quinta-feira, 19 de março de 2009

Folha de S.Paulo - Com o terceiro cromossomo 21 - 19/03/2009

 

Com o terceiro cromossomo 21

Combinação de avanços médicos e sociais aumenta e melhora expectativa de vida dos portadores da síndrome de Down; evolução será comemorada no sábado

Cia de Foto/Folha de Imagem

A família de Carminda Regina Vilas, 55 , passou muitos anos escutando que sua caçula morreria cedo
LUIZ FERNANDO VIANNA
EM SÃO PAULO
Quando Carminda Regina Vilas nasceu, há 55 anos, sua mãe enfrentou três meses de incertezas e desorientação, até ouvir de um médico: "Sua filha é mongolóide".
Hoje condenado, o uso do adjetivo não era pior do que a certeza da medicina de que não havia nada a fazer. Aquela criança viveria pouco e mal.
A ótima saúde de Carminda é prova de que a história poderia ser diferente. E começou a ser em 1959, quando o francês Jérôme Lejeune publicou o resultado de experiências que vinha fazendo com portadores de "idiotia mongólica", como era chamada a síndrome desde 1866, quando foi descrita pelo inglês John Langdon Down.
Além de ser rebatizada de síndrome de Down, ela ganhou de Lejeune sua causa genética: a existência de um terceiro cromossomo no que deveria ser o par 21. Por causa desses números, 21 de março passou a ser, em 2006, o Dia Internacional da Síndrome de Down.
A descoberta está completando 50 anos com motivos para ser comemorada. Um dos principais é a longevidade de pessoas que nasceram antes desse divisor de águas e que, graças aos avanços médicos e sociais, chegaram aos dias de hoje -com vida ativa e afetiva, em boa parte. A expectativa de vida dos Down, que ficava entre dez e 12 anos em 1950, já ultrapassou a barreira dos 60.
David Maiberg Neto tem 61. Vive há 12 na Aldeia da Esperança, um conjunto de casas em Franco da Rocha, na grande São Paulo. As famílias pagam, e o Ciam (Centro Israelita de Apoio Multidisciplinar) cuida dos residentes (não só Down) -são 54 no momento.
A audição reduzida incomoda, mas o pior para David tem sido lidar com a perda da mãe neste ano. "Estou sofrendo muito", diz ele, chorando. Seu caso é comum entre os Down que envelhecem: perdem os familiares sem, no entanto, ter vida independente. O pai e um irmão de David já morreram, só lhe restando a irmã.
Ou melhor, há Sheila, sua namorada. Autista de 37 anos, ela também vive na Aldeia, numa casa em que David tem autorização para dormir três vezes por semana.
"De uns dois anos para cá, ele tem tido perdas que não eram tão acentuadas, como de audição e visão. Acabamos nem percebendo tanto devido à Sheila, que o auxilia muito. E o quadro dela ficou melhor. Os dois se completam", diz a psicóloga Margarete Della Torre.
"Eu gosto dela [Sheila], ela gosta de mim. Ela chora, eu também choro", conta David.
Para reduzir a simbiose, separam os dois nas atividades, como a da oficina de dobrar sacos de lixo, feita por eles em horários diferentes. Nos fins de semana, os residentes vão a teatros, museus, parques aquáticos e, uma vez por ano, fazem passeios longos, como a Salvador e a Bonito (MS).
Carminda Vilas, ou "Carmindinha", como é chamada pelas irmãs, conhece o Rio, Paraty, Foz do Iguaçu e outras cidades. Seu plano ambicioso é ir a Roma ver o papa.
Sai com frequência de casa, em Indianópolis (São Paulo), e, vaidosa, procura estar sempre penteada e com as unhas das mãos e dos pés pintadas.
"Mamãe nunca teve vergonha. Ela a criou como nos criou", conta Ana Maria Vilas, 61, a irmã mais velha. "Carmindinha vai à Sala São Paulo, ao teatro, ao cinema, ao shopping. Se alguém olha com cara estranha, ela fica brava, e a gente compra as dores, fazemos um barraco se for preciso."
De acordo com o relato das irmãs de Carminda, a mãe, Encarnação, passou muitos anos escutando que sua caçula tinha prazos: morreria ainda na infância, na puberdade, aos 13, aos 18, aos 21... "A cada aniversário achávamos que era o último", lembra Ana Maria. "Quando ela fez 50 anos, foi um baita festão, com cem pessoas. Era o sonho de mamãe."
Sonho realizado, Encarnação morreu há três anos. Quem esperava a queda de Carminda se surpreendeu. "Ela não deixava a gente chorar. Mostrou que era a dona da casa, que ia cuidar da gente", conta Dagmar.
Carminda ouve tudo atentamente, mas em silêncio. Embora saiba copiar as letras e se comunicar à sua maneira, não conseguiu desenvolver a fala. Mas isso não a impede de dar olhares bem expressivos para as irmãs quando elas falam algo que a desagrada.
"Clowns"
De segunda a sexta-feira, Oscar Pereira de Araújo Filho, 55, e Wagner Baptista de Figueiredo, 53, entram de manhã e saem às 16h30 -"na quarta é às quatro da tarde, porque tenho fisioterapia em casa", alerta o metódico Oscar- do CSOZ (Centro Sócio-Ocupacional Zequinha), a unidade da Apae (Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais) que atende, no Itaim Bibi, pessoas em estado de envelhecimento. O nome é homenagem ao filho da fundadora da Apae, Jô Clemente. Ele morreu em 2001, aos 52 anos.
O que Oscar e Wagner mais gostam de fazer é ensaiar. Eles são "clowns" (atores-mímicos) nas encenações do grupo do CSOZ. Mas Wagner também gosta da oficina de cozinha ("faço pão de queijo, goiabada, macarrão") e de namorar com Fátima, sua colega no centro.
"Eu gosto muito dela. A gente não tem problemas. Meu coração fica batendo", diz ele, que se diverte ao falar que é mais novo do que sua irmã gêmea, pois saiu depois da barriga da mãe.
Oscar, que já não tem mais os pais, almoça todos os sábados com a irmã. É quando comete um pecadilho semanal típico de quem, tanto quanto possível, quer curtir a vida: "Tomo duas cervejinhas".